sexta-feira, 31 de março de 2017

BRISA NOTURNA ONDULANDO O CRUZEIRO

















Tudo está quieto lá fora
Guardando uma promessa
Que, por hora,
Trai-se em longínquos latidos:
Mundos escapando
De minha tempestade
Cínica, frágil, mesquinha,
Ruminando a rapacidade
Do teu nome traído
No hálito da noite.
Penso sempre havê-lo esquecido
E, devagar,
Distantes conversas pardas
De mundos corriqueiros,
Mais mundos que os meus,
Despertam-me o cheiro
De teu vestido:
Era só viver sem esperar
Eternas pernas, jeitos e feitiços
De tapas e ouriços
Passageiros, agora,
Tudo está quieto lá fora.

AINDA



Ainda
Toda esta vontade
De chorar facas,
No fundo
Moleque turrão.
Dois pássaros
Voando -
Um céu
E todas as línguas -,
Afinal,
Deus é grande
E o mundo é pequeno,
Não é?
A última terra...

ESTRAVIO



Dos meus sonhos
Vou fazer cristal,
Tocar com cuidado
Uns restos desvalidos
E brincar,
Na mais sutil harmonia,
Os nossos ecos,
Rindo desenganos.

Para quando quebrar
Os pés de vidro,
A descoragem vingar-se
Tarde demais -
Escapando todos os cavalos
Na boca da noite,
Num cheiro de campo
E de lua,
Longe...
Longe de casa -,
Hedionda,
Pelas asas.

sexta-feira, 24 de março de 2017

ALVORADA



















Tentei falar tua língua
Depois de morar muito
Em meu país.

O pó cobriu meus olhos
Enquanto olhava
O vento na estrada.

Contou-me um passarinho
De mentira engaiolada:
- Ela hoje vive em terra feliz.

Vou matar os passarinhos, todos!
Rasgar a golpes de faca
Meu coração jogado no mundo.

Vem o olho, brilhante,
De tua terra espiar azul
Em meu céu profundo.

Leve embora aquela dor que me deixou,
Não me serve mais, o vento secou.

Em toda estrada,
Sóbrio,
Meu fígado caminha.
Hoje rio
De uma dor que não é minha.

SONETINHO PARA RAFAELA

Caneta parece nave em jornada
Num caminho que vai até o céu
E, desse jeito, as linhas no papel
Podem ser, perfeitamente, uma estrada.

Então, o céu pode ser uma história,
É só a nossa mente imaginar,
Já que, por certo, o tempo irá guardar
A tinta que será nossa memória.

Guardar até pode, mas não prender -
Sua sina está fadada a voar
E assim condenada a livre ser,

Pois um dia o vento pode cantar
Baixinho, no ouvido de quem ler,
De uma outra vida, o despertar.

LITORAL SUL DESERTO















Falei de mim até cansar
E todo mundo ouviu
Até cansar
O mar
Secou-partiu
Falava de mim até cansar
O mar
A pedra vil
Ondas mil
Minha cabeça
E os meus pés
Os pés meus
E a cabeça minha
Mundo anil

Falei de mim até cansar
O mar
Cansou-cuspiu
Olhar
E ninguém viu.

sexta-feira, 17 de março de 2017

MAROTAGEM



Quando eu ganhar dinheiro
Terei uma casa
Com chuva no jardim 
- Então, verei você abrindo o portão
Sem guarda-chuva, 
Toda molhada!

ANZOL


O quente da vida nos teus pés
Fascina minha boca
A beijar teu caminho
E morrer em ti, criança
Marota,
Enganando a sede
De minha alma louca.

Se hoje tenho
Enlouquecida a alma
E morta a boca,
É castigo
De querer pé sem juízo
Em minha tarde calma
Onde só eu sou preciso
E o perigo
É brinquedo que funciona
Teu amigo.


INSPIRAÇÃO

















Sou todo
Agudo de instantes:
Ato fisiológico
De por pra fora
Todo espinho
Passageiro.
Bêbado no pré-sono
Vê melhor as voltas -
Solto ir e vir.

O cachorro nauseabundo
Busca no amargo
Das ervas
O vômito.

PALHAÇO NA CORDA BAMBA EM DIA DE CHUVA E SABÃO

















Descubro-me
Beijando Assis
De todos os lados
Na brisa malsã
Que não é noite
Nem manhã.
Pago o preço,
Jogo os dados,
Perco
E ganho tombos
E rugas no canto
Do olho
Vermelho,
No beiço seco
Estorricado beijo
E a lua parece um queijo,
Fazendo ciúmes
Tendo casa pra sonhar
Na minha casa:

Quem nunca fugiu
De casa
Cresceu o coração,
Definhando a asa
Palhaço na corda bamba
Em dia de chuva
E sabão.


sexta-feira, 10 de março de 2017

AS NOVAS VACAS













Não abrem-se as portas,
Só a vista
Quente,
E o úmido
De um céu com raiva,
Aqui onde as filhas crescem
Os clitóris
Do mundo
E desaba o tempo:
O animal apara
O pouco
Que resta
Para o novo pasto
E nascem filhos
Que crescem.

ACALANTO DE HORA VAGA



É fim de estrada mesmo
E eu já nem vejo Deus,
Mate-me agora
E reze depois.

Minha busca tua saliva
Já não têm religião
Cuspa meus olhos
No fel da tua luz.

Nossos estômagos, ao avesso,
Ruminam lençóis de chaga,
Dentre as vidas de outras vidas
Acalanto em hora vaga.

Vagabundo que eu sou,
Já não encontro paz
Na fenda abrindo teus olhos
À impiedosa manhã.

Vagabundo que eu sou,
Eu sou
Teu amor jogado fora
Sem o meu consentimento.
Vagabundo que eu sou,
Eu sou
A sombra da minha risada
Em teu arrependimento.

CANÇÃO DE AGOSTO ÚLTIMO














Passaram-se águas
E luas vermelhas na borda do mundo;
Cachaças tortas,
Fumaças no caminho errado -
Cigarros de palha -:
Compadres!
Capins na madrugada,
Atalhos
Que demoram pra chegar
E, nestas coisas
De beira de rio,
O tesão
De sermos velhos,
De termos filhos
E de termos segurado
Alguns bodes.

sexta-feira, 3 de março de 2017

ESTAÇÃO
















Confabulando a trama das irmãs,
Submetendo marés e cios
Ao ócio das novas noites
E forjando a chave das vidas
E das plantas,
Que quase escapa
Num ocaso lunar
Ou nos adereços infindáveis das eras
Despertas à ceifa do piscar,
Espantando o que resta das primaveras.

PAPEL MEU



Papel meu
É o que me sobra
Não nego!
Prenda-se a mim
O que é meu
Na sutileza do prego.

Choro depois
De dor ou de vida,
Do que for carne
Apodrecida

De sabor!

ÁGUA-CLARA



À menina dos olhos
Do poeta
Um amor mais
Que amor
Contentando-se em
Orvalho
Fingindo lágrima
De flor -
Serena paixão
Discreta.