quinta-feira, 29 de março de 2018

BRASILEIA

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                                                                               "Somos desterrados em nossa própria terra."
                                                                                                                  S.B. de Hollanda
                                                                                                     

I

Nos rincões de meus ancestrais
Eu entro com sangue esquecido.
Latejo dormente em minhas mãos
E a fuga incessante dos caminhos
Vingados há tão pouco -
Tão pouco eterno renascer
E a morte, imprescindível
Barreira sem a qual não há:
Momento útero morno,
Jorro incandescente das estrelas
Em espiral descendente
Onde entro incógnito de mim
E ascendo em piras funerárias -
Intersecção do que não sou
Por mundo demarcado
Mas teia forte latente,
Arcaico mito grego,
Dormência ociosa onde a aranha
Cerca, esfinge, os limites da cidade
E inocente ostento a bandeira
Dos pecados que me cabem.


II

Guitarras vomitam elétricas
Um rock 'n'roll
Distorcido em verde biliar
Perfazendo errônea a rota
Daqui para além-mar.
O olho do sumidouro
E a métrica desesperada
Computa em vão dejetos
Mas condensam-se, incólumes,
Altivos sedimentos das raças -
O olho do sumidouro
Escalavrando, impiedoso,
A medida da loucura,
Polida nos crânios ceifados,
Impondo escambo e trapaça
Aos balcões da feira livre.
Transeuntes vêem vazios
Degenerados artigos do sertão -
O coração do Brasil.


III

Batuques ecoam negros
Na densa noite da alma.
Poetas mestiços, em redes armadas
Nas varandas da casa grande,
Se embalam aos gritos insanos
Dos bastardos filhos de Europa
Mas, no entanto, ainda sugam
Esquálidos seios de mãe África.
Jovem terra árida
De tanto doce inútil,
No hospitaleiro mormaço de teu ventre
O vírus da miséria se aninha
E aguarda a lógica de mercado.
Odes esfarrapadas balançam,
Estranguladas por cordéis,
Ao ritmo dos tambores.
Quem bate? - É o braço vadio
Que um dia tudo ergueu.
Quem bate? - É a virilidade
Abortada e esquecida,
De costas largas e surradas
Que, sozinha, arrasta ferida.



IV


Brancos gigantes desdentados
Estupram famintos o sertão
E contornam em vermelho sangue
O mapa do Brasil -
Verde de ver esmeralda
Na verde miragem da mata:
Mata o de comer,
Comer guloso da morte a vida
E comer mesmo a morte.
Fome insaciável avassalando
Remotas paragens
Em tormentas seminais.
Tifo, varíola, gripe
E canibalismo de alma
Isso, um dia,
Irá vingar poesia,
Tifo, varíola, gripe
E sonambulismo de carne
Isso, quem diria,
Ergue nossa moradia.


V

O ex-presidente, embriagado,
Cavalga o céu da metrópole
Montado em sua vassoura -
Um dia das bruxas
No primeiro de abril.
O bafo quente do asfalto cansa a memória
Quando a Antônio Conselheiro
Cruza a Virgulino Ferreira
Maculando o alvo e destroncado
Arianismo de butique, a preço de banana,
Campeando impune nos erres arrastados
E nos tês dente-linguais:
Emprenhando luz no espírito do porco
O miscigênio pari pureza casta
E os ouvidos, ao pé do rádio,
Num carnavalismo marcial,
Marcham uniformes em todo Dia do Trabalho.
Deus ajuda a quem cedo madruga
Ter ressentimento e rugas.


VI

Mãe, eu não quero levantar cedo
Para construir minha pátria.
Quero, antes, dormir
O sono dos justos,
Quero ver o sol nascer!

Mãe, eu não quero regras tortas
Nesse jogo de trapaça.
Quero, antes, a paz
De cartas na manga
E pronta para a guerra.

Pai, eu não quero mais o sossego
Do teu pouco que me cabe.
Quero, antes, o nada,
Essa página em branco,
Esse caos pra sete dias.

Pai, eu não quero prato feito.
Minha fome já me basta!
Quero, antes, a voz,
O meu vômito rasgado
Nas farpas desse arame.

Há muita sujeira embaixo do tapete
E a imponência arquitetônica
Se levanta
Sobre podres alicerces.

Clássicas plantas se emboloram
Na tórrida umidade tropical
E Oscar franze o cenho.

Encerremos a sujeira no cerrado!

O lado esquerdo dormente,
O derrame,
A apatia no coração do Brasil.

De costas para Europa
Os olhos fechados consentem
O cortejo de milicos
Confirmando estatísticas:

Trezentos e sessenta e cinco
Quartas-feiras de Cinzas
Por um bissexto Carnaval.


VII

Queria uma Ilíada,
Uma Eneida,
Uma Luzíada
Ou uma Odisseia
Mas o bafo quente do asfalto
Cansa a memória
E é tudo muito chato:
Os heróis ganharam esperteza.


VIII

"Através dos anéis de fumaça
Da minha mente,
Na longa e tortuosa estrada
O Encanto entrou na minha alma.
Doravante tudo é calma.
Terei me tornado outro?
A mim mesmo estranho?
De mim mesmo evadido?
Pois soube da Terra
E do Céu constelado
Que lhe era destino
Por um filho ser submetido.
E não mantinha vigilância de cego,
Mas à espreita engolia os filhos.
Um trem irrompe dentro dele,
Silvando.
O tempo salta como uma
Máquina de escrever quebrada.
Com um grito que despedaça
A parede de vidro
Ele fica de asas abertas
Para o sol nascente.
Cancelem minhas reservas para a ressurreição
E mandem minhas credenciais
Para a casa de detenção:
Tenho uns amigos lá dentro.
O distanciamento penetra
Como matéria corante
Naquele que desaparece
E o embebe de suave ardor:
A obra é a máscara mortuária
Da concepção."

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